Terrenos Comuns

Descentralização em Moçambique: Autonomia Real ou Controlo Central Disfarçado? 

A descentralização em Moçambique tem sido, desde os anos 1990, apresentada como uma das principais reformas políticas destinadas a aproximar o poder dos cidadãos e a promover uma governação mais eficaz, democrática e inclusiva. No entanto, à medida que o país avança na sua trajectória constitucional e administrativa, persistem dúvidas sobre a autenticidade e profundidade deste processo.

Foi neste contexto que decorreu a segunda edição do Terreno Comum, um espaço da Iniciativa Manifesto Cidadão, que visa promover o diálogo entre cidadãos com diferentes visões, com base no respeito mútuo e na convivência democrática. O encontro reuniu académicos, políticos e cidadãos para debater o estado actual da descentralização em Moçambique. O tema central foi: Descentralização em Moçambique: Autonomia Real ou Controlo Central Disfarçado?

Um Espaço para o Pensamento Plural

Moderado por Fidélia Chemane, membro do Manifesto Cidadão, o encontro foi pautado por um compromisso com um debate respeitoso e plural sobre os desafios e oportunidades da descentralização. “Queremos pensar um Moçambique de todos e para todos”, afirmou ela, sublinhando a importância de construir consensos mínimos para uma convivência democrática.

A sessão contou com a participação da Professora Ana Nhampule, do Dr. Manuel de Araújo e do Dr. Albano Macie, cujas intervenções ofereceram uma leitura abrangente e crítica sobre o processo de descentralização, desde a sua génese até à sua implementação actual.

A Constituição e a Prática: Um Descompasso Persistente

A Constituição da República de Moçambique consagra a descentralização como um dos pilares fundamentais da organização do Estado. O Artigo 8.º estabelece que o país é um Estado unitário, orientado pelos princípios da descentralização e da subsidiariedade, e compromete-se a respeitar a autonomia dos órgãos de governação descentralizada provincial, distrital e das autarquias locais.

Mais adiante, o Artigo 270.º define os objectivos da descentralização, que incluem:

  • A organização da participação dos cidadãos na solução dos problemas próprios da sua comunidade;
  • A promoção do desenvolvimento local;
  • aprofundamento e a consolidação da democracia, no quadro da unidade do Estado moçambicano.

Contudo, como salientou a Professora Ana Nhampule durante o debate, existe um descompasso entre este enquadramento constitucional e a realidade vivida nas províncias e autarquias.

“Na minha opinião, sim, a descentralização devolve poder aos cidadãos naquilo que é a sua essência. No entanto, alguns desafios como a cultura de governação centralizada, a desconfiança técnica e o desafio fiscal reduzem significativamente essa intenção.”

O Artigo 272.º reconhece a autonomia administrativa, financeira e patrimonial dos órgãos descentralizados, mas essa autonomia é frequentemente limitada pela dependência do Orçamento do Estado e pela ausência de mecanismos eficazes de arrecadação de receitas próprias.

Além disso, o Artigo 274.º impõe limites à descentralização, reafirmando a unidade nacional, a soberania e a indivisibilidade do Estado. Este artigo também estabelece que funções de soberania, defesa, segurança pública, política fiscal e diplomacia permanecem sob responsabilidade exclusiva dos órgãos centrais.

A figura do Secretário de Estado na Província, introduzida pela revisão constitucional, é outro ponto de tensão. Segundo o Artigo 271.º, esta figura representa o Governo Central ao nível provincial, supervisionando os serviços de representação do Estado. Na prática, como observou Nhampule, esta estrutura cria uma sobreposição de competências com os governadores provinciais eleitos, enfraquecendo a sua autoridade e autonomia.

Este descompasso entre a letra da Constituição e a prática administrativa levanta questões sobre a eficácia da descentralização como instrumento de democratização e desenvolvimento local. O debate no Terreno Comum revelou que, apesar dos avanços jurídicos, a implementação continua a enfrentar resistências políticas, limitações técnicas e desafios estruturais que comprometem os seus objectivos constitucionais.

Avanços Legislativos e Retrocessos Administrativos

O Dr. Manuel de Araújo, edil com vasta experiência, traçou uma periodização histórica da descentralização, desde o modelo colonial até às reformas pós-independência. Denunciou o que chamou de “marcha hesitante”, marcada por avanços legislativos seguidos de retrocessos administrativos.

Dr. Manuel de Araujo
Dra. Ana Nhampule

 

“A Assembleia da República concede com a mão direita uma série de prerrogativas aos órgãos descentralizados, mas a mão esquerda do Executivo esvazia esses poderes”, afirmou, apontando para uma duplicação de funções e conflitos entre governadores e secretários de Estado.

Araújo alertou ainda para o risco de esvaziamento da autonomia local, especialmente no contexto das reformas legislativas de 2018, que alteraram o modelo de eleição dos presidentes municipais, tornando-os dependentes das assembleias e dos partidos políticos.

Uma Descentralização Nascida da Crise

O jurista Albano Macie ofereceu uma análise crítica do modelo moçambicano, sublinhando que a descentralização não surgiu como parte de um processo natural de consolidação do Estado, mas como resposta a crises político-militares.

“O processo da província não foi um processo natural. Foi um processo para resolver um problema político. Hoje, precisamos de reflectir com frieza sobre o modelo que queremos para o país”, defendeu.

Macie propôs que se repense o nível territorial da descentralização, sugerindo que o distrito, e não a província, poderia ser o espaço mais adequado para uma governação descentralizada eficaz. “A descentralização deve ser funcional, não apenas simbólica”, afirmou.

Participação Cidadã e Reforma Fiscal: O Caminho em Frente

Durante o debate, participantes do público virtual levantaram preocupações sobre a falta de recursos nas autarquias, a ausência de mecanismos eficazes de participação comunitária e a necessidade de reformas fiscais que permitam às entidades locais gerar receitas próprias.

A Professora Nhampule reforçou:

“A autonomia na dependência não dá resultados. Só poderemos fazer ao nível do nosso território aquilo que o centro nos entregar.”

O Dr. Araújo acrescentou que a ausência de um pacote tributário robusto limita o exercício das competências locais, tornando os órgãos descentralizados reféns da transferência de recursos por parte do governo central.

Vozes da Plateia: Críticas e Propostas

A sessão foi enriquecida por intervenções de cidadãos e especialistas que participaram activamente através do chat:

  • Augusta Almeida e Isabel Casimiro alertaram para o uso estratégico do princípio do gradualismo como forma de atrasar o processo de descentralização.
  • Elton Elias Come destacou que a descentralização resulta de acordos políticos e não de uma análise realista das necessidades locais, correndo o risco de se procurar soluções técnicas para um problema essencialmente político.
  • Alfredo Neto foi incisivo: “Nunca houve uma vontade genuína de descentralizar.”
  • Maria Osório questionou a revisão constitucional de 2018 e as leis nº 6 e 7, que, segundo ela, acentuam o poder dos partidos ao retirar autonomia aos presidentes municipais.
  • Nelson Charifo propôs reforçar a capacidade das autarquias para gerar receitas próprias, sem sobrecarregar os munícipes, e criticou a alocação excessiva de recursos para funcionamento em detrimento do investimento.
  • Benilde Nhalivilo sugeriu aprofundar a relação entre descentralização, desconcentração e o actual diálogo político.
  • Stiven Ferrão trouxe um exemplo concreto: a falta de envolvimento das comunidades na gestão de receitas provenientes de projectos locais, contrariando o espírito da descentralização.
  • Guilhermina Zucula levantou dúvidas sobre a sobreposição de funções nas zonas rurais, onde coexistem administradores, chefes de posto e de localidade, todos custeados pelo Estado.
  • Sérgio Fernando considerou que a descentralização tem servido como mecanismo de acomodação política, sem impacto real no desenvolvimento local.

Um Caminho Necessário, Mas Incompleto

Apesar das críticas, os painelistas convergiram na ideia de que a descentralização é um caminho necessário para a construção de um Estado democrático e inclusivo. A sua consolidação exige coragem política, reformas legais, capacitação técnica e uma mudança de mentalidade tanto ao nível central como local.

“Precisamos de consolidar os passos para a frente e reduzir a caminhada para trás”, concluiu a Professora Nhampule, num apelo à acção e à responsabilidade colectiva.

Terreno Comum encerrou com a promessa de continuar a promover espaços de diálogo, contribuindo para que Moçambique se torne um lugar seguro para o exercício pleno da cidadania.